A pandemia e as Desigualdades Escolares

Editorial do jornal Pensar a Educação em Pauta nº 273

As desigualdades escolares no Brasil são imensas e têm origem nos mais diversos fatores. Desde pelo menos os anos de 1960, as pesquisas educacionais vêm demonstrando que as desigualdades escolares não são produzidas – e reproduzidas – apenas por fatores escolares e extraescolares e não podem entendidas de formas apressadas.

Já há bastante clareza, hoje, de que não é possível esperar que a escola, por melhor que ela seja e por mais competente que sejam os seus profissionais, compense as desigualdades sociais e econômicas, sobretudo, mas também de gênero, raça eregionais,  que já se apresentam quando os alunos e as alunas iniciam a escolarização. Sobretudo em países em que as desigualdades são abissais e vergonhosas, como no Brasil, é falacioso depositar unicamente na escola a expectativa de que ela opere o milagre da diminuição das desigualdades. Por sua vez, num círculo vicioso, as desigualdades escolares agem no sentido de produzir/reproduzir e, ao mesmo tempo, legitimar tais desigualdades.

Do mesmo modo, é sabido que combinados com as dimensões indicadas acima, os fatores intraescolares contribuem para diminuir ou aumentar as desigualdades escolares. Tais fatores operam dentro da escola, ainda que nem sempre são estabelecidos ou determinados no interior da mesma e, sim, pelas políticas educacionais, por exemplo. Dimensões como infraestrutura da unidade escolar, equipamentos, organização do corpo docente e discente, relação com a comunidade, tamanho das turmas, engajamento dos docentes e discentes no projeto Político Pedagógico da Escola, dentre outros, impactam as escolas e as diferenciam, ainda quando funcionam no mesmo território.

Todos estes fatores agem nas dinâmicas sociais e escolares cotidianas em todos os lugares em que existe escola. Uma das tarefas do poder público, se se quer diminuir as desigualdades, é agir nos dois sentidos: com políticas públicas que visem diminuir as desigualdades sociais, econômicas, regionais, de gênero, raciais e outras e, ao mesmo tempo, políticas educacionais que visem a tornar as escolas menos desiguais entre si.

Desafortunadamente, no Brasil, ao longo do tempo, foram poucos, muito poucos, os momentos em que tivemos  políticas públicas e, dentre elas, as educacionais, que visavam diminuir as desigualdades. No mais das vezes, sob o discurso falacioso de que nossas desigualdades sociais e econômicas decorrem das desigualdades escolares, o que se tem feito é culpabilizar a própria comunidade escolar – os  alunos, suas famílias e o corpo docente – pela pobreza e pela concentração de renda no país.

Os fatores de produção de desigualdades escolares e, portanto, de legitimação e produção/reprodução das desigualdades sociais, em tempos de guerras ou de crises agudas como a que estamos vivendo hoje no Brasil, podem ser minorados ou acentuados a depender do conjunto das politicas públicas estabelecidas pelos Estados para o enfrentamento dos impactos dessa crise nos diferentes grupos populacionais e, muitas vezes, nos diferentes territórios.

No Brasil, hoje, infelizmente, mais uma vez o que as análises demonstram é que ao invés de agir para atenuar o impacto da pandemia nos grupos populacionais mais pobres, há um claro direcionamento das ações federais e de muitos estados e municípios no sentido de proteger os grupos populacionais privilegiados. Do mesmo modo, é evidente que as políticas educacionais vão na mesma direção.

A defesa enfática feita por muitos gestores e por fundações privadas de que a educação à distância pode ser uma solução para a continuidade da educação escolar em tempos de pandemia pode, neste sentido, funcionar como um fator a mais  para o aumento das desigualdades escolares. Ainda que as escolas particulares, uma das expressões das desigualdades socioeconômicas e escolares no Brasil, encontrem dificuldades de trabalhar com a EAD, é perfeitamente sabido que o professorado da escola pública e seu respectivo alunado, não têm condição alguma, no seu conjunto, de fazer uma educação à distância com qualidade neste momento.

Não bastasse os professores e as professoras não terem tido tempo de se  preparar para a situação em que nos encontramos hoje, os alunos e as alunas das escolas públicas não possuem, em suas casas, ambiente e infraestrutura necessários  à boa realização das tarefas escolares.  Nessas circunstâncias, a insistência das autoridades públicas e dos gestores da educação para que a escola funcione à distância é, sem dúvida, um fator preocupante.

Em tempos de crise como a que estamos passando, a maior preocupação dos gestores públicos e de todas as organizações e grupos que prezam pela vida e pelo ambiente democrático, deveria ser no sentido de minorar o impacto do problema nas populações mais pobres. Isso passa por tomar medidas de cunho econômico, social, cultural e políticas de proteção às camadas mais vulneráveis. Ao estabelecer o funcionamento da educação à distância como forma de compensar o não funcionamento das escolas, ao manter o calendário do ENEM e ao acenar com a aprovação do projeto de educação doméstica, apenas para citar alguns exemplos, os governos, sob o argumento de proteger direitos, estão, na verdade, precarizando a vida e a escola da maioria da população brasileira.


Imagem de destaque: Marcelo Camargo/Agência Brasil

1 comentário em “A pandemia e as Desigualdades Escolares”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

A pandemia e as Desigualdades Escolares

As desigualdades escolares no Brasil são imensas e têm origem nos mais diversos fatores. Desde pelo menos os anos de 1960, as pesquisas educacionais vêm demonstrando que as desigualdades escolares não são produzidas – e reproduzidas – apenas por fatores escolares e extraescolares e não podem entendidas de formas apressadas.

Já há bastante clareza, hoje, de que não é possível esperar que a escola, por melhor que ela seja e por mais competente que sejam os seus profissionais, compense as desigualdades sociais e econômicas, sobretudo, mas também de gênero, raça eregionais,  que já se apresentam quando os alunos e as alunas iniciam a escolarização. Sobretudo em países em que as desigualdades são abissais e vergonhosas, como no Brasil, é falacioso depositar unicamente na escola a expectativa de que ela opere o milagre da diminuição das desigualdades. Por sua vez, num círculo vicioso, as desigualdades escolares agem no sentido de produzir/reproduzir e, ao mesmo tempo, legitimar tais desigualdades.

Do mesmo modo, é sabido que combinados com as dimensões indicadas acima, os fatores intraescolares contribuem para diminuir ou aumentar as desigualdades escolares. Tais fatores operam dentro da escola, ainda que nem sempre são estabelecidos ou determinados no interior da mesma e, sim, pelas políticas educacionais, por exemplo. Dimensões como infraestrutura da unidade escolar, equipamentos, organização do corpo docente e discente, relação com a comunidade, tamanho das turmas, engajamento dos docentes e discentes no projeto Político Pedagógico da Escola, dentre outros, impactam as escolas e as diferenciam, ainda quando funcionam no mesmo território.

Todos estes fatores agem nas dinâmicas sociais e escolares cotidianas em todos os lugares em que existe escola. Uma das tarefas do poder público, se se quer diminuir as desigualdades, é agir nos dois sentidos: com políticas públicas que visem diminuir as desigualdades sociais, econômicas, regionais, de gênero, raciais e outras e, ao mesmo tempo, políticas educacionais que visem a tornar as escolas menos desiguais entre si.

Desafortunadamente, no Brasil, ao longo do tempo, foram poucos, muito poucos, os momentos em que tivemos  políticas públicas e, dentre elas, as educacionais, que visavam diminuir as desigualdades. No mais das vezes, sob o discurso falacioso de que nossas desigualdades sociais e econômicas decorrem das desigualdades escolares, o que se tem feito é culpabilizar a própria comunidade escolar – os  alunos, suas famílias e o corpo docente – pela pobreza e pela concentração de renda no país.

Os fatores de produção de desigualdades escolares e, portanto, de legitimação e produção/reprodução das desigualdades sociais, em tempos de guerras ou de crises agudas como a que estamos vivendo hoje no Brasil, podem ser minorados ou acentuados a depender do conjunto das politicas públicas estabelecidas pelos Estados para o enfrentamento dos impactos dessa crise nos diferentes grupos populacionais e, muitas vezes, nos diferentes territórios.

No Brasil, hoje, infelizmente, mais uma vez o que as análises demonstram é que ao invés de agir para atenuar o impacto da pandemia nos grupos populacionais mais pobres, há um claro direcionamento das ações federais e de muitos estados e municípios no sentido de proteger os grupos populacionais privilegiados. Do mesmo modo, é evidente que as políticas educacionais vão na mesma direção.

A defesa enfática feita por muitos gestores e por fundações privadas de que a educação à distância pode ser uma solução para a continuidade da educação escolar em tempos de pandemia pode, neste sentido, funcionar como um fator a mais  para o aumento das desigualdades escolares. Ainda que as escolas particulares, uma das expressões das desigualdades socioeconômicas e escolares no Brasil, encontrem dificuldades de trabalhar com a EAD, é perfeitamente sabido que o professorado da escola pública e seu respectivo alunado, não têm condição alguma, no seu conjunto, de fazer uma educação à distância com qualidade neste momento.

Não bastasse os professores e as professoras não terem tido tempo de se  preparar para a situação em que nos encontramos hoje, os alunos e as alunas das escolas públicas não possuem, em suas casas, ambiente e infraestrutura necessários  à boa realização das tarefas escolares.  Nessas circunstâncias, a insistência das autoridades públicas e dos gestores da educação para que a escola funcione à distância é, sem dúvida, um fator preocupante.

Em tempos de crise como a que estamos passando, a maior preocupação dos gestores públicos e de todas as organizações e grupos que prezam pela vida e pelo ambiente democrático, deveria ser no sentido de minorar o impacto do problema nas populações mais pobres. Isso passa por tomar medidas de cunho econômico, social, cultural e políticas de proteção às camadas mais vulneráveis. Ao estabelecer o funcionamento da educação à distância como forma de compensar o não funcionamento das escolas, ao manter o calendário do ENEM e ao acenar com a aprovação do projeto de educação doméstica, apenas para citar alguns exemplos, os governos, sob o argumento de proteger direitos, estão, na verdade, precarizando a vida e a escola da maioria da população brasileira.


Imagem de destaque: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *