Bar do Capeta – uma versão legítima
Ivane Laurete Perotti
A ficção tem testemunhas. Posso provar. Com testemunho.
Enquanto concebia o Arrudas resfolegando águas e barro na garganta da pinguela, alguém revisitou o arquivo dessa torrente. Emocional. Visceral, também. Com direito ao pavor cobrado.
Foi o texto que me levou a ela. E à janela sobre o Arrudas.
A sintaxe da natureza rege a si mesma. Dependências e consequências são imediatas. Cambiais. Coisas da vida têm vida. Terra e mar. Rios e cachoeiras. Ribeirões. Semântica explícita. Na água, todo tubarão é peixe. Em leito líquido não se deita para descansar. A chuva merece respeito. Cuidado. Eram as vozes da avó maturando a alma da menina. Lívida, diante daquele volume crespo. Delirante. Há dias o céu debulhava lágrimas de aviso. A cortina descia encharcando o mundo. O seu e o de outros. Sem trégua. Batia na vidraça com força de mão. Rolava como corpo redondo. Acumulava-se, insistente. Brutal. Teimosa como ela mesma quando impedida de correr pela rua de dois lados. Dois lados que o Arrudas não dividia. Ligava. Unia.
Da janela entreaberta, media, silenciosamente, o volume do ribeirão. Crescia o som dos espasmos barrentos. O Arrudas chorava apertos. Perdia limites. Tomava a rua, arrastando pedaços da frágil pinguela. Gostava ainda menos dessa parte. A passarela de madeira – só mais tarde substituída pelo ferro – era o des/limite para as brincadeiras das crianças. Ela e os primos conheciam cada vão. Cada fresta desenhada pelo tempo. Contavam pés na ida. Na volta. Com ou sem o guarda-corpo. Voando por sobre as tábuas gastas. Descendo antes ou depois dela. Abaixo dela, quando os adultos se distraíam. Recebia nomes. Marcas de compasso. Tempo no esconde-esconde. Personagem e testemunha. O passadiço guardava segredos. Agruras. Amores em deslocamento. Mágicos. Fatídicos. Inocentes na origem. Culpados, na reta final. A ponte improvisada recolhia narrativas. Em segredo de tábua.
Não enxergava a boca do Capeta. E quanto mais forte a chuva, mais fraca a procura por ela. Não se lembra do dia específico. Também não viu o dito cujo tabaqueando na letra da esquina. Era local proibido para crianças. Passar por ela, só pela necessidade de cortar caminho e, com a mão na mão de alguém. O nome instigava curiosidade. Mas não passava disso. Tanto havia para se fazer, especialmente em dias secos. Dias de brincar pelas margens do Arrudas. Não presenciou aquele engolimento. Mas perdera um primo. Do mesmo jeito. Tragado pelas águas do ribeirão. E isso lhe bastara para compreender a força daquela revolta. Revolta da chuva incessante. Revolta do ribeirão sem lastro para carregar tanta água.
Em uma dessas circunstâncias, com a vó a lhe explicar o fenômeno das inundações, acreditou ter ouvido um lamento sem precedentes. Jurou ouvir o ribeirão. O som tomou-lhe a pele. Contraiu o estômago sem boca. Arrepiou pés e alma. Uma tal tristeza lhe chegou ao peito que seus olhos verteram sabedoria. Chorou. Baixinho. Chorou o sentimento das águas desenfreadas. Não entendeu. Sentiu. Entregue ao poder da conexão. Do respeito. Chorou com o espírito amadurecido pela empatia simultânea. Os braços preocupados da avó ficaram sem explicação. Afundou neles. Derreteu-se. Íntegra. Viva. Antiga, talvez. Antiga como podem ser as crianças perspicazes. Atentas. Alfabetizadas na língua da natureza. Essa língua que se abre, plástica. Materializada em eventos consequentes. Dependentes da leitura sígnica. Tão básico quanto o acontecimento da janela. À janela do tempo. Na janela da infância bem-tratada da menina que revidou o meu texto. História não tem pregas. Tem olhos.
O ribeirão segue seu curso. A testemunha também. Aferrada às lembranças, apesar dos bulevares de concreto que calam o Arrudas. Localiza a pinguela no arquivo daqueles dias. Desenha-a com a mão. Traça seus limites. Recoloca-a na paisagem cosmopolita. Carrega-se de imagens tocantes. Latentes. Deixa-me entrever o não visto. Torna-me cúmplice. Espectadora.
A testemunha da ficção ouve o silêncio do Arrudas. Por ora. Até que a próxima grande chuva rompa a faixa que o amordaça. Então, muitas janelas poderão temer-lhe a contenção.
Para a menina à janela, o ribeirão segreda existência. Ambos constituídos no discurso que revela gente. Gentes. O meio ambiente agradece.
*Essa escrita é dedicada à testemunha da ficção.