Bar do capeta – parte II

Ivane Laurette Perotti

Se o Arrudas não afoga, afogam-se no Arrudas. 

 

Os antigos dizem que a proximidade da morte traz lucidez. Sabedoria impopular na des/educação atual. O cotidiano se traduz em trends. Tendências programadas que comandam a superficialidade. Ponto. Não se considerou o Arrudas culpado. Nem inocente. Era líquido. Movente. Razoavelmente profundo. Livre. Até demais. Não fossem as pinguelas a cobrir os vãos dessa fluidez, a população haveria de contorná-lo, com maior distância e dificuldade. Por mais que a velocidade da década ainda não se medisse em megas, Mbps e  Wi-fi  – havia semente imberbe (imagino!) –   a “fidelidade sem fios” era vocal. Bocal: de boca em boca corria a esfera dos fatos. E os fatos corriam na proporção das bocas. Contundentes. Verossímeis. Noticiosas.

 

A miudeza daquela tarde ditava antecipação. Tipo sopa de caserna em dia de pena. Líquida. Frugal. Todos sabiam a que vinha: castigo. Quando as nuvens rompiam as densas caudas, o Bar do Capeta virava inferno. Não “um” inferno  – “o” Érebo do bairro. Nada muito distante dos registros históricos que aludem à criação do primeiro bar – por uma mulher – há mais de 3.500 anos a.C.. O Capeta fazia jus ao legado: espaço político de ampla integração. Cultural. Etílico divã. Social: o Tártaro. Reunião de todos. Ideias e tragos. Mágoas e dissoluções. O apanágio daquela tarde insinuava-se. Sonoro. Úmido. Os cúmulos-nimbo adensavam-se. Rápidos. 

 

Avisos abundavam. Sinais no tempo. Tempo de sinais, diziam os versados na culpa histórica: do pecado original aos pecados da modernidade. O céu dera ordens de corrida. Elétricas. Pesadas. Ribombos entravam janelas adentro. Curtos. Longos. O do Capeta, na voz de seu atendente, repassara o alerta. “ Para casa! A chuva vem de cheio!” Até os lerdos por escolha de copo e fumaça entenderam o recado. Deixaram tudo para trás. A pinguela arqueou-se sobre os pés desvairados. Muitos. Ao mesmo tempo.  Prometia-se um dilúvio. A terra, encharcada, desceria dos pontos mais altos. Com certeza, aquela borrasca escapara das mãos de deus. O pé d’água avançou. Inclemente. Veloz.  

 

A portas fechadas, o Capeta levantara mesas e cadeiras. Pernas sobre pernas. Garrafas cheias no alto. Botelhas vazias, atrás do balcão. Os secos, corridos para o piso de cima. Prejuízos minimizados. Tardava buscar abrigo, ponderou o atendente.  A água descia. Tão mais rápida quanto mais forte a chuva. Essa vinha a galope de corisco.

 

Ao virar a letra da esquina, deparou-se com o inconfessável. Água não tem freios. Bambo das pernas e com as ideias empapadas, encontrou o derradeiro destino. Encostado na parede  molhada, tabaqueava, driblando a tempestade com a mão em concha, o último cliente. Gritou com o desavisado. Mal se via a ponta alta da pinguela. Era coisa de minuto para o Arrudas vomitar excessos. Tentou arrastar o dito  que lhe empurrou, decidido a ficar. Bateu. Gritou. Nada. O homem parecia estaca de fundação. Assarapolhado, ainda pelejou com outras manobras. Desistiu. O Arrudas engolia a rua. Correu, se é que se consegue correr com a água batendo nas canelas. Levantou as pernas no cada vez mais alto do peito. Acreditou ver a pinguela por entre o líquido barrento. Mas a pontizela improvisada, instalada para facilitar o inafiançável, cedera às golfadas extras  do  ribeirão. Dos tropeiros à urbanidade. Vira muito, o velho Arrudas. Recebeu o atendente do Capeta como quem recebe uma sentença. A contragosto, aceitou o movimento. Enrolou o moço no manto diluvial. 

 

Foi-se . Carregado. De chofre. De golpe. Uma lapada só. Dizem que o dito tudo viu. Lá, da parede molhada onde estacionara, de cigarro em punho. Nada fez. O último cliente daquela tarde que miudara, tão trágica quanto poética, furtou-se de humanidade. Inteligente, talvez. Poltrão, quem sabe. Dele não mais se soube. Deles, na verdade. Pois do atendente não se encontrou nem corpo nem alma, apesar de todas as súplicas.

 

Verdade ou mentira, o Capeta foi minguando. Aos poucos. Sob tensão visível. Olhares atravessados. Desconfiança ontológica: da chuva e do sobrenatural. Mesas vazias. Garrafas cheias. Erva mofando. Pitura pouca. Fumo baixo. O bar morgou. Devagarinho. Lento como o Arrudas em dia seco. Seco como a mágoa que se cola na dor da perda. Do desalento que escancara a fragilidade da vida. Nem sempre um término prediz um recomeço. Afinal, fim é fim. Enfim. Final.


Ainda há quem diga facécias sobre o trágico dia, arremetendo selvagerias linguísticas entre o nome do ribeirão e a eficácia da planta xará. Resultado: a muitos pés sob o asfalto, plantaram o Arrudas. Roubaram-lhe olhos e ventas. Cimentaram-lhe o humor. Há quem ouça o arquejar do ribeirão no silêncio da lua nova, contorcendo-se embaixo de muitas camadas de concreto. Tentando respirar, livre do peso e da culpa. Deve sentir saudade do sol. Dos cabelos do vento norte.  Do cochicho das estrelas. Sei não! Com a natureza das coisas e as coisas da natureza não se brinca. De ribeirão em ribeirão a água corre. Conecta-se. Abunda. Vai que o Arrudas se torne um “Bola-de-Neve”  ou um  “Napoleão” de George Orwell… Revoluções há! Basta que sejam escritas.

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