As urnas e o saber popular: digressão pelos fios da história

Ana Luíza Jesus da Costa

Com a proximidade das eleições – as presidenciais têm sempre maior intensidade – o tema educação ganha centralidade na cena política. Seu significado político em termos mais amplos é inegável. Há muito tempo ela é compreendida por diferentes vertentes teóricas e ideológicas como ferramenta indispensável para o governo das populações. Desde a formação do estado nação brasileiro e, principalmente, a partir da segunda metade do século XIX, a educação é tomada como condição para o processo “civilizatório” e para o controle social, como mais recentemente é considerada mola do desenvolvimento social e econômico. Segundo uma eminente autoridade imperial do partido Saquarema, a educação seria um dos ramos mais difíceis da administração pública, porém fundamental, pois “forma o povo”.

Inspirada por ecos seculares das relações entre educação e política, gostaria, aqui, menos de comentar as propostas educacionais veiculadas pelos atuais candidatos às diferentes instâncias do poder executivo e legislativo e mais a relação da educação com o próprio processo eleitoral. Mesmo porque tais propostas estão, na maioria das vezes, voltadas para “a solução do problema da escola” e pretendo pensar a educação como um fenômeno mais amplo que vai para além desta poderosa instituição.

A pergunta que constantemente me faço ao pensar a relação entre educação e política pode ganhar, por hora, a seguinte formulação: Um povo mais escolarizado faz as melhores escolhas políticas?

Peço licença para lançar mão de uma percepção, talvez impressionista, já que aqui faço uma digressão matizada por dados científicos, mas que não pretende, ela toda, obedecer aos critérios mais estritos de cientificidade e às normas acadêmicas. Trata-se da percepção de que, no Brasil, se nutre, especialmente entre os setores mais escolarizados da população, o senso comum de que um povo mais escolarizado realiza melhores escolhas políticas. Este senso pede o complemento de outro: aquele que supõe ser mais “civilizado”, mais “ponderado”, mais “racional” protestar contra um mau governo nas urnas, enquanto as manifestações de rua, os protestos mais ou menos acirrados são criminalizados e naturaliza-se a identificação do manifestante como vândalo (palavra na moda desde junho de 2013) ou, como vândalo em potencial.

Durante muito tempo, os analfabetos foram proibidos de votar em nosso país. Apenas em 1988 conquistaram tal direito, mas hoje ainda são inelegíveis. É o que consta no capítulo IV da carta magna, “Dos Direitos Políticos”. De qualquer forma, esta questão não está superada. Basta notar como uma das grandes polêmicas sobre o candidato Luiz Inácio Lula da Silva girava em torno de seu histórico escolar, que dele não teria feito um bacharel. Polêmica esta alimentada tanto no momento de sua eleição, quanto no momento da reeleição, quando, teoricamente, já teria demonstrado sua capacidade de exercer um mandato presidencial.

A pergunta que constantemente me faço ao pensar a relação entre educação e política pode ganhar, por hora, a seguinte formulação: Um povo mais escolarizado faz as melhores escolhas políticas?

A história nos ajuda a pensar a construção dessa manifestação arraigada em nossa cultura política. Para tanto remontamos o ano de 1881, quando a Reforma Eleitoral, a chamada Lei Saraiva instituiu como critério adicional para o voto, além de comprovação de determinada renda, a capacidade de ler e escrever.

Segundo o historiador Sidney Chalhoub, o problema da reforma eleitoral de 1881 era relativo a definição de cidadania num contexto de crise do regime escravista. Na segunda metade do século XIX, o problema era definir os direitos políticos dos descendentes de escravos. Após a lei de 1871 [Lei do Ventre Livre], havia o temor de que os filhos de escravos nascidos livres viessem a adquirir cidadania plena ao atingir a maioridade, tornando-se agentes formais do mundo político. A solução à brasileira desse problema, foi a exigência da capacidade de ler e escrever para a qualificação de eleitores que alijou milhares de descendentes de escravos da política formal na década seguinte. Vemos, então, que desde muito cedo, na história da formação de nossa nação, foi confundido instrução e capacidade de exercício da cidadania política. Entretanto ficavam intocadas algumas das distorções centrais que desqualificavam o processo eleitoral naquele momento.  Chalhoub conclui que ninguém acreditaria que membros das supostas “massas inconscientes” dos que não sabiam escrever seriam autores de qualificações fraudulentas de eleitores, atas falsas, apurações forjadas. Como poderiam, sendo analfabetos? E ainda, que o governo continuaria a vencer as eleições porque permaneceria a seu dispor as armas habituais para fazê-lo: distribuição de empregos públicos, regalias em contratos, comissões rendosas, honrarias diversas.

Estes sujeitos, excluídos do direito do voto por serem considerados “inconscientes”, “ignorantes” e “incapazes” de realizar “tão importante escolha” demonstraram, por exemplo, nas páginas de periódicos operários, perfeito conhecimento das razões da exclusão e um posicionamento crítico, quanto a elas.

Para José Murilo de Carvalho, outro historiador do período, a República recém proclamada, como antes o Império, não teria integrado socialmente as classes populares e os excluía politicamente. A exclusão dos analfabetos pela constituição republicana teria sido particularmente discriminatória. Apesar da reforma eleitoral que lhes impedia o voto datar de 1881, o autor constata que a República furtou-se, em seu texto constitucional, do provimento de educação para o povo. Exigia-se para a cidadania política uma qualificação que só o direito social da educação poderia fornecer e, simultaneamente, desconhecia-se esse direito. Era uma ordem liberal, mas profundamente antidemocrática e resistente a esforços de democratização.

Precisamos dizer que de inconscientes, pouco havia entre as classificadas “massas”. Os estudos recentes em história da educação vêm mostrando um conjunto importante de iniciativas em educação popular desde o século XIX. Promovidas por diversos sujeitos sociais e também pelo Estado, em certa medida, ajudam a repensar a ideia de um povo completamente analfabeto naquele período. Hoje é possível afirmar que a luta popular pelo direito à educação remonta ao século XIX, ao momento mesmo em que a forma moderna da escola começou a ser implantada em nosso país. As classes populares reconheceram a escola governamental como meio de difusão de uma educação social e politicamente referendada e procuraram obter do Estado, o provimento deste bem para seus filhos ou para os adultos. Tratava-se de uma luta por algo que, não sendo ainda um direito social, passava a ser critério de exercício de um direito político: o voto.

A reação dos trabalhadores à citada reforma eleitoral teria sido imediata, no plano do debate de ideias políticas, algo que talvez não fosse esperado de homens integrantes de uma pressuposta “massa popular analfabeta” no século XIX. Estes sujeitos, excluídos do direito do voto por serem considerados “inconscientes”, “ignorantes” e “incapazes” de realizar “tão importante escolha” demonstraram, por exemplo, nas páginas de periódicos operários, perfeito conhecimento das razões da exclusão e um posicionamento crítico, quanto a elas. A educação aparece, assim, para as classes trabalhadoras, como forma de participar socialmente, ferramenta de luta simbólica neste embate com o Estado. Os operários leitores de tais periódicos, mas também os que escutavam ler, os que ouviam as notícias correntes de boca em boca, tiveram acesso aos debates sobre a reforma e, provavelmente, mesmo sem saberem ler e escrever, desenvolveram uma opinião política sobre ela.

Não é minha pretensão negar a importância dos conhecimentos socializados pela escola para o bom exercício da cidadania política, quero apenas questionar um senso comum que parece ver neles uma garantia para tal. E para encerrar esse “pensamento em voz alta”, gostaria de trazer uma das reflexões mais lúcidas que conheço sobre a relação entre educação e política. Ela vem de um lavrador do sul de Minas Gerais, o Ciço, entrevistado pelo antropólogo Carlos Rodrigues Brandão. É possível que este seja um suposto lavrador, personagem construído por Brandão. Não importa, pois quem trabalha, ou trabalhou de perto com educação popular sabe que Ciço é uma figura verossímil. Toda a conversa se desdobra a partir da pergunta: o que é educação? feita pelo antropólogo à Ciço. Ao longo de sua poética resposta, o lavrador nos mostra que a experiência do povo no seio do trabalho, das festas, das relações familiares, religiosas e tantas outras também educa, também ensina. Não vou entrar no mérito do teor daquilo que é ensinado. Pois, enfim, Ciço também faz uma apreciação crítica sobre a escola e seu descolamento com relação à vida desse mesmo povo. Ele se pergunta: “O que a escola ensina, meu Deus? Sabe? Tem vezes que eu penso que pros pobres  a escola ensina o mundo como ele não é”. Ao que Brandão interpela: “Ciço, e uma educação dum outro jeito? Um saber pro povo do mundo como ele é? (…) Isso bem podia ser feito; tudo junto: gente daqui, de lá, professor, peão, tudo”.  E o lavrador responde: “Esse eu queria ver explicado. (…) Essa eu queria saber como é. Tem?  (…) “Pode? Pode ser dum jeito assim? Pra quê? Pra quem?”. Essa proposta educacional eu também queria ver, mais do que aquelas veiculadas, ou tergiversadas  pelos candidatos  durante os debates  televisivos.


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