A educação “uberizada”

Paulo Henrique de Souza 

Não basta saber ler que “Eva viu a uva”. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho.

Paulo Freire. A educação na cidade. São Paulo: Cortez, 2001.

A “uberização” da educação é um fenômeno recente, mas que já provoca discussões intensas sobre os rumores do trabalho docente e da qualidade educacional. Inspirada no modelo de trabalho promovido por aplicativos como o Uber, essa tendência transita pelo discurso de flexibilidade e autonomia, mas frequentemente resulta na precarização das relações de trabalho dos docentes. 

Na educação, ela se manifesta pela contratação de professores via plataformas digitais, onde os docentes são chamados a atuar conforme a demanda, sem vínculos empregatícios sólidos ou garantias trabalhistas tradicionais. Embora pareça vantajoso para as instituições, que pode reduzir custos e ampliar sua capacidade de atendimento, esse modelo tem implicações profundas na dignidade profissional e na estabilidade de quem ensina.

O contraponto entre o aumento das mensalidades escolares e a questão do salário dos docentes evidencia uma desigualdade estrutural no setor educacional privado. Essa disparidade reflete uma desvalorização crônica dos professores, especialmente quando consideramos que eles têm, como relevante, um “piso” salarial, mas não encontramos um “horizonte” de crescimento em suas carreiras.

No centro desse debate está a terceirização, uma prática que desvincula o profissional das instituições educacionais em que atua, eliminando não apenas os laços contratuais formais, mas também o comprometimento institucional com sua formação continuada, bem-estar e direitos básicos. 

Os professores passam a ser contratados em um regime que valoriza a economia e a produtividade imediata, mas ignoram o papel fundamental do educador como agente formador de indivíduos e comunidades. Essa lógica, ampliada pela padronização dos sistemas de ensino, reduz o papel do docente à execução de roteiros pré-definidos, onde criatividade, autonomia pedagógica e interação humana são cada vez mais limitadas.

A padronização, um dos pilares dessa modelagem, transforma o ensino em um produto mensurável, regido por metas, análises e avaliações externas, muitas vezes realizadas por usuários – sejam eles estudantes, responsáveis e até mesmo Inteligência Artificial (IA). 

Embora a avaliação de desempenho seja importante, nesse contexto ela assume uma visão mercantilista, ignorando as complexidades do processo de ensino-aprendizagem e tratando os professores como peças facilmente substituíveis em uma engrenagem que prioriza resultados quantitativos. Isso contribui para uma desvalorização ainda maior da profissão, reforçando a ideia de que o educador é um serviço a ser consumido, e não um parceiro indispensável na construção do conhecimento.

Além disso, as condições de trabalho no modelo de “uberização” são notoriamente instáveis. Com a proposta de perdas de garantias a cada Convenção Coletiva de Trabalho (CCT) bolsas para seus filhos, férias remuneradas ou plano de carreira, estão sempre na mira de quem deseja a precarização das condições de trabalho e vida.

Os docentes enfrentam a romantização de sua profissão além de  jornadas indefinidas e imprevisíveis (devido ao trabalho que levam para casa), que oscilam conforme a demanda, sem qualquer proteção contra períodos de baixa procura. A promessa de autonomia para definir  sua metodologia de trabalho fica restrita ao Manual do Professor e Plataformas Digitais. 

A ilusória  força do professor como agente social,  anda criando um ciclo de vulnerabilidade e transtornos crescentes de problemas ligadas à saúde mental devido ao processo desgastante de trabalho na educação básica privada e no ensino superior, onde os sinais de “uberização”  são perceptíveis. 

A expansão de plataformas digitais e a adesão crescente de instituições a modelos terceirizados refletem uma tendência global que parece priorizar a eficiência econômica sobre a qualidade educacional e o bem-estar dos educadores. Contudo, os impactos dessa prática vão além dos trabalhadores, afetando também a formação dos estudantes, que passam a ser inseridos em um sistema educacional fragmentado e desumanizado.

A “uberização” da educação, portanto, não é apenas um modelo econômico, mas também um movimento que redefine as relações entre educadores, instituições e estudantes. Ao tratar a educação como um serviço, e não como um direito ou um processo humano essencial, esse modelo ameaça enfraquecer a estrutura social que sustenta uma educação de qualidade, inclusiva e transformadora. É urgente refletir sobre os impactos dessa tendência e buscar alternativas que valorizem a profissão docente, garantindo condições dignas de trabalho e fortalecendo o papel da educação pública  como pilar de uma sociedade mais justa e equitativa.

As escolas privadas frequentemente justificam o aumento das mensalidades com base em:

  • Inflação e custos operacionais: Insumos como materiais, manutenção e energia seus preços são reajustados regularmente.
  • Investimentos em infraestrutura: Ampliação de espaços, aquisição de tecnologias ou criação de novos serviços.
  • Qualidade percebida: Muitas vezes, os aumentos são atribuídos à melhoria de serviços, mesmo que isso não reflita diretamente em trabalho ou benefícios aos profissionais.

Contudo, na prática, o impacto desse aumento raramente se converte em uma valorização salarial proporcional aos docentes. Qual nota podemos dar para essa “corrida de ratos” – metáfora do livro Pai Rico, Pai Pobre de Robert Kiyosaki?

Os professores, mesmo sendo o alicerce do processo educacional, enfrentam:

  • Piso salarial limitado: O cumprimento do piso nacional (no caso das redes públicas) ou de convenções coletivas (no caso das redes privadas) é visto como o máximo necessário, sem incentivos para a progressão na carreira.
  • Falta de meritocracia real: Não há valorização clara baseada em desempenho, formação contínua ou tempo de serviço.
  • Carga de trabalho desproporcional: Muitas vezes, os docentes enfrentam múltiplas jornadas ou turmas superlotadas, sem aumento proporcional da remuneração.

Esse cenário cria uma barreira psicológica e financeira: o “piso” que sustenta a base da profissão é, ao mesmo tempo, o teto da realidade para muitos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *