A construção da cidadania na Rússia

Antonio Carlos Will Ludwing

Como muitos sabem, as ideologias se encontram presentes em todas as formações sociais. E embora haja várias concepções a respeito desta palavra, tais como tratado das ideias, dissimulação da realidade e instrumento de dominação, vamos entendê-la aqui pelo ângulo motivador e reagente, ou seja, como um conjunto de concepções próprias de um determinado grupo que serve para orientar suas ações no âmbito da sociedade. 

No caso da Rússia, a história registra que algumas delas influenciaram a formação de seu povo.  Uma  das mais antigas é a anarquista, que é contrária a qualquer forma de organização baseada na hierarquia e a qualquer tipo de dominação, seja ela política, econômica, cultural ou religiosa. Faz a defesa de uma sociedade totalmente livre, sem Estado, incentivadora da cooperação, da ajuda mútua e da autogestão. O grupo que a assumiu teve uma atuação muito importante nas rebeliões que ocorreram entre 1905 e 1907.

Este conjunto de anarquistas apareceu no cenário político por causa de uma divergência com os adeptos do socialismo e da social-democracia. A ideologia socialista é difusora da crença de que o processo histórico pode ser direcionado e que é possível usar determinadas formas de atuação política capazes de colaborar para sua delimitação e aceleração. Divulga também as ideias de liberdade, eliminação das classes sociais e ausência da propriedade privada. Por sua vez, a ideologia social-democrata defende a conservação da economia de mercado, a implementação dos ideais de igualdade e justiça sociais e a preservação e ampliação das liberdades democráticas.

Entre 1927 a 1953, a liderança da Rússia passou para as mãos de Stálin, que realizou mudanças profundas no país sob a égide da ideologia totalitária. Vale lembrar que a concepção totalitária expõe uma crítica radical da situação e apresenta uma proposta também radical de sua transformação. Ela se caracteriza pela ampla penetração na sociedade, pela mobilização de toda a coletividade e pelo término da distinção entre as esferas política e social. Agrega ainda o partido único, a figura do déspota e o recurso do terror.

Em fins dos anos oitenta, o então presidente Gorbachev tomou consciência de que a economia da União Soviética se encontrava muito abalada e que precisava ser reformada. Sua proposta de mudança previu a manutenção de liames entre o socialismo e o liberalismo. Cabe recordar que a ideologia liberal é uma concepção que coloca ênfase no indivíduo, o qual é visto como um ser dotado de autonomia plena e que não pode sofrer coação alguma. A valorização dos direitos é um de seus motes, a democracia representativa é preferida em detrimento da participativa e a tripartição do poder constitui a forma da organização do Estado. A propriedade privada e a autonomia do mercado são imprescindíveis na economia.

A partir do início deste século até os dias atuais, a Rússia se encontra governada por Putin, que se orienta pela ideologia autoritária, a qual impregnou todo o período imperial. As características marcantes desta ideologia são o acento colocado na autoridade do governo, a centralização do poder político nas mãos de uma só pessoa ou determinado órgão constituído por um pequeno grupo de indivíduos e a colocação em posição subalterna das instituições representativas.  Dentre suas ações, uma chama bastante atenção e se refere ao vistoso apoio concedido ao desenvolvimento do tradicional afeto patriótico que vem desde a época imperial. Como muitos sabem, o patriotismo é uma expressão de amor pelo país de origem, juntamente com uma sensação de unidade com aqueles que o compartilham. Ele agrega o sentimento de orgulho, devoção e apego a uma pátria, bem como exibe uma forte tendência fraterna a outros cidadãos, principalmente se houver o envolvimento de fatores ligados à etnia, cultura, crenças religiosas ou história.

É viável dizer então que as ideologias aqui apresentadas, as quais de um modo ou outro estiveram e continuam presentes e atuantes no cotidiano do povo moscovita, de maneira isolada ou na compleição de um amálgama, contribuíram significativamente para o desenvolvimento do cidadão russo. Isto ocorreu por meio da educação formal ou escolar, através da educação informal ou extra escolar e durante o processo de socialização secundária via atividades de internalização. Neste transcurso constitutivo é possível vislumbrar a geração de três tipos deles, quais sejam o apático, o insurgente e o civilista.

O cidadão apático, provavelmente numeroso, mas talvez não majoritário, deve ser visto como um indivíduo acomodado que prefere levar a vida apenas na esfera privada e ser governado por outrem. O surgimento desta espécie de pessoa tem a ver com a forte presença das ideologias autoritária e totalitária no decorrer do tempo, as quais levam a assumir uma atitude receosa e uma postura de contenção. 

No que diz respeito ao cidadão insurgente, parece certo que ele tende a ser bem menos numeroso que o apático e o civilista. Vale notar que este tipo se enquadra na categoria de ativo, ou seja, um indivíduo que gosta de atuar na esfera pública, que se considera governante, que almeja influenciar as decisões políticas impactantes na vida em sociedade, que quer acima de tudo dirigir os dirigentes. As ideologias anarquista, socialista e liberal inclinam-se a ser as provocadoras de sua emergência e incentivadoras de seu protagonismo. Quanto a isso, vale ressaltar as afluentes manifestações ocorridas nos anos de 2011 a 2013, resultantes de supostas fraudes nas eleições que envolveram mais de cem mil pessoas e inauguraram uma nova era de ativismo e de oposição no país, os protestos de 2021 contra a detenção de Alexei Navalny provocadores de quatro mil prisões e a recente sublevação em dezenas de cidades contra a guerra da Ucrânia, objetos de cerceamento policial e encarceramento de milhares de pessoas. 

Pertinente ao cidadão civilista, cabe dizer que, possivelmente, o mesmo faz parte do grupo mais numeroso da sociedade russa. Sua configuração deve muito à secular e vigorosa presença do patriotismo que se encontra fortemente internalizado na subjetividade dos indivíduos e norteia de modo consistente a conduta das pessoas, o qual, desde há muito tempo, Vladimir Putin vem se dedicando a incentivá-lo e a aprimorá-lo  por meio de ações e destinação de vultosos recursos financeiros. Embora seja um tipo de cidadão atento às vicissitudes da coletividade, haja vista o empenho voluntário de muitos deles no combate a incêndios florestais e na assistência aos atingidos por inundações, ele deve ser visto como um sujeito conciliador, dotado de uma elevada dose de otimismo, com disposição para enfrentar adversidades, minimizador das querelas recorrentes e motivado para a prática da devoção aos outros.  

É bem provável que os setenta por cento dos moscovitas que aprovam a invasão da Ucrânia, segundo pesquisa datada deste mês de março, contenham uma elevada quantidade de civilistas. Como pode ser inferido, é uma espécie ideal de cidadania para os governantes autocráticos, principalmente os desvairados e animados por ideias expansionistas, porque além de não serem contestadores estão sempre prontos para acatar e cumprir as decisões e os apelos vindos de cima.

 

Sobre o autor

Professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em educação pela USP. Autor de Democracia e Ensino Militar (Editora Cortez) e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania (Editora Pontes). 


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